UM OLHAR CABOVERDIANO

Thursday, April 07, 2005

MEMÓRIA HÍBRIDA, IDENTIDADE E DIFERENÇA: uma visão múltipla da comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro.(DISSERTAÇÃO DE MESTRADO)

RESUMO

Este trabalho aborda a recriação da memória e da identidade dos imigrantes caboverdianos no Brasil, através de suas falas e da observação de seus modos de vida, focalizando a comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro como cenário principal deste processo. Neste contexto, entendemos que analisar a comunidade caboverdiana no Rio é estudar uma comunidade cuja memória é híbrida e mestiça. Contudo, essa hibridez encontrada na comunidade é própria da cultura caboverdiana, que constrói desde o país de origem uma memória múltipla, constituída, desde o início por um entrecruzamento de fatores e tendências.
Na construção da cultura caboverdiana, propomos o conceito MEMÓRIA HÍBRIDA, a partir da noção de cultura híbrida desenvolvido por Glissant em seu estudo: Introduction à ume poetique du divers.
A memória híbrida quer significar o encontro e a interpenetração dos vestígios etno-culturais das memórias dos escravos africanos com as memórias dos colonizadores que ocupavam o arquipélago. Neste caso, entendemos por vestígios a diversidade de fragmentos culturais trazidos pelos escravos das suas tribos para Cabo Verde, além da incorporação de alguns hábitos e costumes europeus já bem alterados, devido às reelaborações sofridas pelo contato com uma outra cultura. Esses escravos chegam ao arquipélago isolados de todas as suas referências, mas portadores de universos simbólicos vividos e compartilhados. Apesar de pertencerem a tribos distintas, os escravos não colocaram suas culturas em oposição, já estando dominados e misturados nos navios negreiros. Com relação a comunidade no Rio de Janeiro, a memória híbrida passa a significar a mescla entre elementos culturais brasileiros ou, mais especificamente, cariocas, de um modo que os primeiros se alteram a partir do encontro com os segundos, instalando-se um processo de permanente recriação da memória.
Convém ressaltar que os escravos provenientes de diversas identidades étnicas, no sentido de serem portadores de um acúmulo de heranças culturais que permitem distingui-los de outros grupos sociais, foram espoliados das suas línguas maternas, arrancados à força das suas raízes e trazidos para Cabo Verde, perdendo contato com suas tradições, tais como: sistema de parentesco, casamentos, utensílios de trabalho, artefatos, religião, alimentação, até a forma de enterrar os mortos de acordo com preceitos, tabus e superstições. Em outras palavras, perderam o contato com a sua "memória coletiva", isto é, com os seus quadros de referências sociais, segundo Halbwachs. Todavia, o colonizador também perdeu o contato com suas origens devido ao distanciamento resultante das precárias condições de navegação da época e das péssimas circunstâncias climáticas, geográficas, sociais e políticas existentes em Cabo Verde. Assim, o homem branco não pôde transmitir a cultura européia na sua integridade, ainda que os missionários encarregados pela conversão dos escravos não encontraram resistência de crenças que dificultasse a evangelização, uma vez que cada escravo convivia já com crenças diferentes das suas próprias. Por outro lado, devido ao isolamento e à desproteção dos seus grupos de origem, eles se submeteram à doutrina cristã, mas misturaram as contribuições da cultura européia com os vestígios das memórias africanas. O convívio das diferenças, portanto, marca Cabo Verde desde o início, dando origem a uma memória híbrida sempre disposta a se mesclar. A partir disso, nasce uma memória em devir, em construção, em permanente reelaboração.
Neste ponto, Semedo afirma que: Cabo Verde constitui um dos raros países de proveniência escravocrata onde a convivência cultural apagou quase na totalidade, os preconceitos étnicos. O homem caboverdiano define-se essencialmente como uma identidade cultural, num mosaico de gente com diversas tonalidades somáticas e fisionômicas.
O nosso entendimento nos aponta que os povoadores esqueceram as diferenças etno-culturais, mesclando-se as diversas contribuições culturais, tanto africanas quanto européias. Disso resulta um povo que, apesar de parecer homogêneo, é bastante heterogêneo. Porém, nota-se alguns hábitos comuns que os diferenciam de outras culturas, mas aproximam-se de diversas outras, dada as semelhanças muitas vezes reconhecidas como resquícios culturais de outros povos. Em virtude disso, cremos que as diversas linguagens, como forma de compreender e interpretar o mundo trazidas pelos povoadores se misturaram, processando-se uma memória híbrida e mestiça que se pauta em laços afetivos e de solidariedade, mas também significando uma forma de resistência à fixação de uma identidade etno-cultural. Nessa direção, é possível assinalar que tanto o europeu quanto os escravos abandonaram muitas diferenças etno-sociais e recriaram alguns de seus vestígios, das suas características iniciais, fazendo surgir uma memória atravessada por diferentes expressões culturais que não os isolaram e nem conduziram à formação de guetos, na medida em que permitiram estabelecer o exercício do diálogo intercultural, aprendizagem com a diferença, a não discriminação, tolerando as singularidades. Neste contexto, enfatizamos que a memória caboverdiana surge do encontro dos vestígios culturais transplantados das terras de origem, resultando em uma memória híbrida, mestiça, singular, mas multifacetada que se mostra sempre disposta a ir ao encontro da diversidade cultural, social e histórica. Entretanto, essa hibridez, não significa eliminar disputas, conflitos e divergências presentes nas interações sociais, mas pressupõe a tomada de consciência da diversidade cultural, isto é, de crenças, valores e costumes que oferecem múltiplas escolhas.
A pesquisa discute a construção de uma memória híbrida em termos teóricos e a partir de depoimentos orais colhidos na pesquisa de campo que serviu de base para entendermos as trajetórias, a integração, os modos de vida e a permanente recriação da memória que se faz na comunidade do Rio de Janeiro. Também analisa os riscos de uma memória híbrida dentro dos limites oferecidos pela pesquisa participante. A análise das entrevistas e a observação de campo evidenciam que, embora exista uma perda de laços comunicativos com Cabo Verde, a comunidade local recria alguns hábitos e costumes da antiga terra mesclando-os aos da cultura brasileira, produzindo, assim, um novo modo de vida, ou seja, uma nova forma de perceber-se e reconhecer-se como caboverdiano.
Com relação à pesquisa de campo, trabalhamos principalmente com a observação participante e entrevistas com membros da Comunidade Caboverdiana no Rio de Janeiro. Nossa metodologia, de cunho qualitativo, inclui: observações de campo, tomada de anotações, fotos e entrevistas abertas com imigrantes caboverdianos. Essas entrevistas visaram coletar informações sobre os processos de construção da memória pela comunidade local, e foram realizadas com 10 (dez) imigrantes caboverdianos e 5 (cinco) descendentes, sendo que 3 (três) residentes na cidade de Nilópolis/bairro Olinda, e 7 (sete) na cidade de Nova Iguaçu/bairro Grajaú. Também entrevistamos uma brasileira, casada com um imigrante moçambicano que convive com a comunidade local, totalizando 16 (dezasseis) entrevistas. Articulando nossos subsídios teóricos às entrevistas, realizamos uma reflexão sobre suas falas, privilegiando alguns aspectos: as lembranças do país de origem, os hábitos e costumes trazidos para o Rio de Janeiro, a possível transformação desses hábitos devido à aculturação no novo espaço, os hábitos e costumes que permaneceram em suas memórias, visando relacionar as lembranças do espaço vivido em Cabo Verde a seus modos de vida atuais.
Os capítulos apresentados desta dissertação respondem às questões do tema proposto. Assim, no primeiro capítulo analisamos a memória híbrida à luz de alguns teóricos que articulam a memória à construção de uma identidade social. Neste sentido, procuramos pensar a memória híbrida em um contexto social e histórico, remetendo para uma concepção de memória dinâmica que existe no interior de universos múltiplos e em processo de metamorfose. No segundo capítulo, relacionamos a memória caboverdiana com o processo migratório. Aqui, focalizamos a migração como um processo histórico motivado não só pelas condições deficitárias do arquipélago e a busca de novos espaços para garantir melhores condições de vida, mas também desencadeado pelo espírito de aventura e abertura para conhecer novos grupos. Refletimos sobre o processo de integração dos imigrantes no Rio de Janeiro, que representa uma mudança espacial e social com reflexos sobre a sociedade de partida e de destino, nomeadamente sobre a percepção e organização de seu sistema simbólico e social. Discutimos sobre a mestiçagem cultural acontecida em seu país de origem, que facilitou a integração destes imigrantes no Rio.
No terceiro capítulo, descrevemos e analisamos a Comunidade Caboverdiana no Rio de Janeiro como sendo um grupo social singular, sem estabelecer comparação com outros grupos existentes nesta metrópole. Abordamos os mecanismos usados por esta comunidade para a recriação da memória e da identidade, bem como a forma em que é transmitida a cultura recriada no Rio de Janeiro. Analisamos alguns hábitos e costumes, visando detectar transformações, evoluções ou permanências nos iniciais deste grupo.
No quarto capítulo, avaliamos os riscos que uma memória híbrida e mestiça representa para a cultura caboverdiana, de modo que essa reflexão possa instigar novas investigações nos pesquisadores interessados em desenvolver suas pesquisas sobre culturas abertas. Aliás, indagamos sobre as conseqüências da globalização e suas incidências na memória de uma comunidade específica, como a caboverdiana.
A título de conclusão, vivemos num momento social em que, de um lado, foram desenvolvidas inúmeras reflexões que serviram de base para á teoria clássica sobre a memória coletiva e, de outro, ganham visibilidade comunidades que possuem características abertas que nos apontam para uma memória híbrida, geradora de identidades hibridizatórias. Cremos que é neste impasse que as pesquisas sobre as memórias híbridas, como é a caboverdiana em seu país de origem e na comunidade do Rio de Janeiro, tornam-se importantes. A partir dos depoimentos orais durante as entrevistas, verificamos como a memória híbrida propicia a construção de algo completamente novo, e como se pauta na construção da diferença, estando sempre por se fazer, na medida em que sofre atravessamento cultural e social de diversos sistemas de representações. Sendo assim, é nosso dever chamar a atenção para a compreensão do novo sem atribuir-lhe um significado pejorativo, valorizando-o como expansão das características da própria hibridez cultural. Por estes motivos, cremos na necessidade de uma política que se apoie sofre o respeito à diferença em um contínuo reconstruir de nossas memórias. A partir daí, o nosso trabalho pretende contribuir para que as ciências sociais e humanas possam teorizar sobre a memória híbrida, noção que propusemos a partir do conceito de cultura híbrida de Glissant. Pensamos que a nossa pesquisa pode contribuir para estes estudos ao focalizar a memória híbrida num pequeno universo, mas pensamos também que ainda resta muito a ser explorado acerca dos modos como essa hibridez se realiza, sobre suas potencialidades e seus riscos. Em nossa pesquisa procuramos destacar o modo como essa memória se abre para a diferença, produzida nos lugares de convivência e de trocas de experiências sociais, nas quais as identidades sofrem um atravessamento multicultural e multiracial, como é o caso da sociedade do Rio de Janeiro, onde é possível achar uma diversidade de grupos sociais e étnicos que se mesclam, e, consequentemente, enfraquecem os laços de comunicação com o país de origem.
Cabe aos caboverdianos refletir sobre os riscos de uma memória híbrida, num momento em que as questões culturais assumem uma importância global, amparados por uma visão plural. Para tal, precisamos, caboverdianos ou não, refletir sobre nossos paradigmas acerca da memória coletiva de modo a enfrentarmos os riscos da perda dos laços nas gerações de descendentes de imigrantes caboverdianos no Brasil e na diáspora em geral.
BIBLIOGRAFIA
BENTO, Artur Monteiro. A comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro: memória híbrida, identidade e diferença. Rio de Janeiro: PPGMSD/UNIRIO, 2005, 120p.
GLISSANT, Édouard. Poétique de la relation. Paris: Gallimard, 1990.
_________________. Le meme e le divers. In: Les discours antillais. Paris: Seuils, 1981.
HALBWACHS, Maurice. Les cadres Sociaux de la mémoire. Paris: Éditions Albin Michel, 1994.
SEMEDO, J.M. Um arquipélago do Sahel. In: AHN. Descoberta das ilhas de Cabo Verde. Cabo Verde, Praia, Sépia Paris, 1998, p. 36.
OBS: Esta obra foi aprovada com conceito "A" no mestrado em Memória Social e Documento na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO, com o seguinte título: "A comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro: memória híbrida, identidade e diferença". Constitui-se Banca Examinadora os seguintes Profs. Doutores: Auterives Maciel da UFF, Miguel A . de Barrenechea, Josaida Gôndar e Regina de Abreu da UNIRIO. A Banca recomendou sua edição e divulgação no meio acadêmico, entendendo a memória híbrida como uma ferramenta de trabalho para estudar os grupos contemporâneos. Além disso, a memória híbrida poderá ser também utizada como uma chave interpretativa para pensar as teorias clássicas sobre memória e identidade, especialmente alquelas apontadas por por Halbwachs e Pollack..
O trabalho poderá ser consultado na Biblioteca da UNIRIO/URCA, mas brevemente será editado. Este resumo poderá ser utilizado parcial ou totalmente, desde que o autor Artur Monteiro Bento seja citado, pois a MEMÓRIA HÍBRIDA é da autoria do autor e está registrado em Cartório Brasileiro como propriedade intelectual, protegido pela LEI n° 9.610/98. O PLÁGIO é tratado como CRIME CONTRA PROPRIEDADE INTELECTUAL; CRIME DE VIOLAÇÂO DE DIREITO AUTORAL – ART 184 que traz o seguinte teor: violar direito autoral: pena detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. Pena reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa. CP-Br. (Dr. Nelson P. M de Oliveira, advogado)

1 Comments:

  • Este resumo faz parte da dissertação de mestrado em Memória Social e Documento da UNIRIO/BRASIL, intitulada: A comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro. Nesta, propomos o conceito MEMÓRIA HÍBRIDA como uma ferramenta de trabalho para pensar os grupos sociais contemporâneos. Será editada e divulgada pela Universidade com o título: Memória Híbrida, identidade e diferença: uma visão múltipla e mestiça da comunidade caboverdiana no Rio de Janeiro. O conceito é da autoria e propriedade do autor, porém poderá ser utilizado por estudantes e pesquisadores, deste que o mesmo seja citado. Ver obs. no final do texto.

    By Blogger cabo verde, memória, história e identidade, at 11:40 AM  

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